domingo, 28 de setembro de 2008

Os enquadramentos noticiosos e o Magalhães (2)


Em relação ao Magalhães, esse mais recente desígnio da nação, sobre o qual, qualquer tipo de crítica é vista como uma tremenda heresia, foi apresentado como o computador 100% nacional. A imprensa mainstream, seguindo o enquadramento do governo apresentou-o como tal, e só aos poucos, através essencialmente dos blogs, se foi percebendo que o Magalhães afinal não tinha quase nada de nacional, mas a história já estava contada, e com contradições ou não, hoje na mente da maior parte dos portugueses, o Magalhães é o nosso computador. 

Mas independentemente, do computador ser ou não português, questão já extensivamente discutida em vários blogs, outras questões igualmente importantes devem ser objecto de discussão. E se o deviam ter sido a priori, antes do projecto ter sido levado avante, que o sejam pelo menos a posteriori objecto de escrutínio. O Pacheco Pereira levantou no último programa da Quadratura do Círculo uma das questões que me parecem ser mais relevantes e que tenho visto ser muito pouco debatida. A questão da pedagogia. No meio de toda esta euforia com as novas tecnologias, que o Primeiro-Ministro se encarregou de apresentar, como o grande salto em frente da sociedade portuguesa, parece que toda gente se esqueceu de perguntar o óbvio. Será aconselhável que crianças no primeiro ciclo do ensino básico tenham acesso a computadores na sala de aula?

Em Agosto, na Atlantic, Nicholas Carr, escreveu um artigo que tem causado grande controvérsia, chamado “Is Google Making Us Stupid?”. O mesmo artigo vem mencionado num artigo do Expresso, de 30 de Agosto. Defende o autor que a internet pode estar a afectar o nosso cérebro e a forma como raciocinamos. Da sociedade da informação nasceu um novo tipo de leitores: mais contemplativos e menos interpretativos. Um dos problemas que vários especialistas apontam ao uso intensivo da internet é a cada vez maior dificuldade de concentração que as pessoas expostas ao seu uso adquirem. Esta questão tornam-se ainda mais pertinente quando a questão é a exposição intensiva de crianças à internet.

Para mim, que nasci na década de 80, este ponto é especialmente importante. Na minha geração são já muito poucas as pessoas com verdadeiros hábitos de leitura, e isso também se traduz numa linguagem, e numa escrita cada vez mais pobre, que frequentemente os professores, em especial no ensino universitário se queixam. Faço parte da geração que começou a usar a calculadora muito precocemente, porque os pedagogos das ciências da educação achavam que só trazia vantagens. Hoje, no entanto, são cada vez mais os que clamam pelo regresso aos "velhinhos" métodos da matemática. Quanto a mim, hoje, à semelhança da maior parte dos jovens da minha geração, com muita vergonha minha, não faço uma conta de dividir sem recurso a uma calculadora.

Felizmente para mim, no que diz respeito às ciências humanas, ainda houve muito boa gente a mostrar-me que nada podia substituir o contacto directo e por vezes até doloroso com os livros. Mas quantos professores universitários, mesmo na área das ciências humanas, não encontram diariamente na minha geração, inúmeros alunos aos quais se lhes pedissem uma mera lista dos dez livros que mais gostaram de ler, estes não eram capazes de a preencher, e não por falta de memória, mas porque nem dez livros dignos de registo leram.  E como é óbvio citar a "Floresta", "Ulisses", ou a "Mensagem", lidos no básico, não é motivo para menor embaraço. 

Ernestine, uma professora das “antigas”, personagem do romance de Philip Roth, a “Mancha Humana”, num dos seus diálogos dizia: “No tempo dos meus pais, e até em boa parte no seu e no meu, costumava ser a pessoa que ficava aquém. Agora é a disciplina. É muito difícil ler os clássicos; logo a culpa é dos clássicos. Hoje o estudante faz valer a sua incapacidade como um privilégio. Eu não consigo aprender com isto, portanto alguma coisa está errada nisto. E há especialmente alguma coisa errada no mau professor que quer ensinar tal matéria. Deixou de haver critérios, Mr. Zuckerman, para só haver opiniões.”

Bem sei, que o actual momento que vivemos, não é muito propício a contraditar mentes iluminadas, que descobriram a fórmula da salvação nacional, e que só vêm na oposição e em qualquer crítica aos seus desígnios, forças de bloqueio. Mas, de facto, é indispensável, que pelo menos na blogosfera se continue a escrutinar estes projectos, mesmo quando eles nos são apresentados como projectos de salvação nacional. O Magalhães, tal como a Ota, ou os traçados do TGV não são dotados nenhuma infalibilidade. E mesmo, quando bem intencionados, como acredito ser o caso do Magalhães, podem produzir efeitos indesejados sobre os quais importa reflectir. 

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